Outras falas

Era mais um dia de procura de imagens que pudessem retratar, no futuro, o quotidiano  do nosso concelho, no último ano do milénio.
Preparava-se uma grande edição fotográfica, um trabalho que pelo permanente contacto com as pessoas se veio a revelar bastante interessante, gratificante mesmo.
Naquele dia tínhamos começado por fotografar uma aldeia fantasma, Águias, uma torre acastelada que ensombrava duas dezenas de casas pequeninas, atarracadas, que dela partiam em direção a uma pequena Capela. Das casas destacavam-se as desmesuradas chaminés, um grito de memórias de gente, a riscar os ventos, a resistir à morte anunciada. Embora se tratasse de um cenário extremamente romântico, capaz de nos deixar horas a imaginar histórias de nobres e donzelas, o silêncio pesado que se sentia nas casas abandonadas, em ruinas, deixou-nos mudos, reféns de todo aquele abandono.  Findo o trabalho subimos para o Jipe e, como quase sempre, o Luis, que era o fotografo, virou-se para mim e disse-me – e agora onde é que vamos pá?
A charneca que nos envolvia, um montado de sobro e de azinho a perder de vista, que fora em tempos o reinado de um conde, convidava a um belo passeio pelo campo abrindo-nos também a porta para eventuais encontros interessantes. Sem hesitações, respondemos a esse apelo de aventura. Metemo-nos pela charneca adentro, por entre azinheira e sobreiros, pasmados pela infinidade de flores, de vidro aberto, inspirando essências, vendo e ouvindo os pássaros. Uma boa meia hora depois, num pequeno vale, avistámos um rebanho de ovelhas. Aproximamo-nos lentamente, gozando essa aproximação como quem se prepara para levantar a tampa do baú onde se guarda um tesouro. Ainda um pouco afastados parámos junto a uma ponte, feita de grandes travessas de madeira assentes sobre vigas de ferro, já muito oxidadas.


No riacho as ovelhas bebiam nas pequenas poças de água, ilhas que a areia cercava, afogando-as. Na charneca o princípio do Verão era sempre o fim daquele pequeno ribeiro, pela Primavera adentro as terras gemiam todas as águas. Agora as areias e os barros à superfície desapareciam agora sob uma pelagem de mil cores, um imenso mar de vida, que as ovelhas aparavam a passo e dentada certa. O Pastor vigiava o seu rebanho, à sombra de uma grande azinheira, na margem oposta à que nos encontrávamos. Como nos postais que se fazem para vender aos turistas, estava de pé, apoiando-se ao cajado, como se este fosse um prolongamento do chão que pisava. Acompanhavam-no dois preguiçosos “Serra de Aires”, enrolados, de focinho enfiado na erva, muito peludos, quase sem formas. Atento à nossa aproximação - dois tipos carregados de sacos, máquinas fotográficas e um tripé, o pastor manteve-se quieto, certamente com um olho em nós e outro no rebanho. Imaginei-o curioso, talvez mesmo intrigado com aquelas inesperadas visitas. Já a curta distância disparámos um cumprimento – bom dia, podemos. Resposta rápida da sua parte – bom dia, façam favor.. Nas apresentações que se seguiram apertámos as mãos, um confronto desigual, entre as nossas mãos lisas e inexpressivas e umas mãos fortes, históricas, revestidas por uma pele dura, calejada, gretada, a lembrar a textura da casca da  arvore que nos acolhia. Expliquei que estávamos ali para fazer umas fotografias para um livro, que haveria de no futuro mostrar aos nossos netos, e aos dele, como se vivia hoje na nossa terra. Não me pareceu muito surpreendido com o assunto, disse-nos – acho bem, é uma boa ideia, com as voltas que isto leva qualquer dia não há pastores, está tudo vedado, metem o gado nas cercas e ele que se governe. Podemos então fazer-lhe umas fotografias, disse-lhe: - ora essa, tirem as fotografias que quiserem, respondeu-nos sorrindo, com um sorriso quase de vaidade. 
Livre para começar o seu trabalho o Luis começou de imediato a fotografar, e eu, no meu papel de “entertainer”, sem lembrança de grandes assuntos para falar com o nosso recente amigo fui provocando uma conversa insípida.
-          está calor..
-          é tempo dele amigo, daqui para diante é o que nos espera...
-          com este tempo o ribeiro já se aguenta muito tempo?
-          É verdade, e olhe que eu já tenho algum receio de elas ali beberem. A água não está estragada mas também não está grande coisa. Não sei o que se passa agora com as águas. Dantes este ribeiro tinha peixes e a água, mesmo nas pegos ficava boa até à última gota. Lembro-me que no final do Verão, quando os pegos ficavam só com uma bacia de água vinha aí com os meus filhos, que na altura ainda eram pequenos, e com uma bateira de junça tirávamos um alguidar de peixe. Olhe, apanhávamos barbos, carpas, bogas e até enguias; era uma festa.. Agora o ribeiro está cheio de areia por causa das searas de tomate que ai tem feito e a água morre nos pegos, fica podre e cheira muito mal.
-          O senhor é de aqui, da vila?
-          Sou, mas moro ali no monte.
-          No monte da torre?
-          Sim, sim, agora sou o único morador, eu e a minha mulher, mas ela está lá para casa do filho, tem andado adoentada.
-          Já é pastor há muito tempo?
-          Há muitos anos, há mais de vinte, talvez...
-          E gosta desta vida?
-          Gosto, gosto, se não gostasse não era capaz de aqui andar. Gosto muito dos animais.
Enquanto íamos conversando as ovelhas já saciadas, subiam a outra margem do riacho e iam-se agrupando debaixo de duas azinheiras, para fazerem a sua sesta. O meu companheiro de aventura, com tudo fotografado, entretinha-se a fazer festas a um cachorro que tinha descoberto junto dos outros cães.
Aquela conversa estava a encher-me de ideias, o sítio era magnífico, comecei a imaginar-me pastor, a vida ao ar livre, os animais, a companhia dos cães, um cenário idílico para um projeto de vida futuro!
Já a preparar a nossa despedida perguntei ao pastor: – então e agora daqui vai para onde?
-          agora vou para o monte, almoçar e dormir a sesta. Até lá para as quatro horas da tarde elas já não abalam dali debaixo das azinheiras; está muito calor, estão ao “calmeiro”; depois andam e comem toda a noite.
-          Então e o senhor tem de andar toda a noite atrás delas?
-          claro...
Calado, fiquei alguns instantes a tentar imaginar o que seriam essas deambulações noturnas; um homem sozinho seguindo os chocalhos, sob um céu estrelado...
Tentando perceber melhor como seria o estar assim só na imensidão do negro das noites, disse ao pastor – O pior que esta sua vida deverá ter é que se está sempre sozinho. Ele fez uma expressão de grande surpresa e respondeu-me:- sozinho! eu nunca estou sozinho, tenho aí todos esses animais que me dão muito trabalho e os cães que nunca me abandonam. Dizendo isto olhou para os cães e continuou: - ele é um bocado esquivo, bom trabalhador, não me deixa uma ovelha para trás, mas anda sempre de um lado para o outro, agora ela anda sempre atrás de mim, falamos muito, como agora no Verão, falamos noites inteiras; é claro que ela não me responde mas percebe tudo. Pouco tempo depois partíamos. Na bagagem, além das fotografias, levávamos outras imagens que nunca mais iríamos esquecer.

Carlos Canhoto

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