Cananó um vinho de talha com tradição

 

Fui a Cabeção, visitar uma das Adega do Cananó. Abriu-me as portas José Vieira, o mentor desta aventura vinícola. E que me contou a seguinte história.

 

Era uma vez uma família de alcunha Cananó. A família de José Vieira. Não sabe de onde vem o nome, apenas que é uma alcunha muito antiga. 

Os Cananós e os Rolheiros estabeleceram-se em Cabeção, uns vindos do Algarve, outros das Beiras e em homenagem à família, o vinho ficou com este nome, a alcunha mais castiça.  

Os Rolheiros remontam ao trisavô de José, que era algarvio, e veio para Cabeção montar uma fábrica de rolhas. 

José conta a sua história e o amor ao vinho de talha e à vinha: "comecei a andar pequenino atrás do meu avô, pai e tio que eram todos Cananós. Tinha eu 6 ou 7 anos quando comecei a acompanhar as vindimas com eles e a pisar as uvas dentro de um tanque. Aos 16 ou 17 anos comprei a primeira uva e fui fazer a minha primeira talha, com a ajuda de outro tio o “ Zé Galêgo."

É preciso dizer que em Cabeção, à época,  havia uma adega porta sim, porta não. Estamos a falar dos anos 60 do século XX. O pai de José comprou uma adega onde fazia o seu vinho e que ainda hoje existe em Cabeção, na rua 5 de Outubro. 

Quando o  pai adoeceu decidiu dar continuidade à tradição da família e registou oficialmente o nome vinho de Cananó como patente sua.  E, assim, foi o primeiro a ter vinho de talha em garrafa patenteado em Cabeção.  Hoje o Vinho “CANANÓ" é vendido em alguns restaurantes do concelho de Mora e em outros espaços comerciais, dos quais se destaca a “Tasca Gigante", em Mora e o Restaurante “O Poço", em Brotas, que apresentam o Cananó como vinho da casa. 

Preservar a identidade e autenticidade única dos vinhos detalha é o designio máximo da casa Cananó. Para isso se usam as castas de uva que melhor se adaptaram aos terrenos arenosos de Cabeção. Este vinho é quase uva pura, com graus alcoólicos altos, que mantém os aromas praticamente sem aditivos.

O vinho Cananó é feito de várias castas, todas locais, nomeadamente o Aragonez, a Trincadeira e o Castelão (Periquita).

As vinhas velhas têm cerca de 20 a 30 anos, as mais modernas. As mais antigas têm quase 100 anos.

Numa das suas vinhas situada em Concelhos – Cabeção, descobriu José uma preciosidade. Um poço feito em cortiça com mais de 200 anos. O avô do Tio Russo morava lá, no lugar onde as videiras quase parecem azinheiras.  O poço é pouco maior que uma talha e dele brota uma água fresquinha, muito boa. O projecto de José é recuperar esse poço. 

Há esperança de que esta tradição de fazer vinho continue na família. João, o filho, estuda enologia, com vontade de dar continuidade à história dos seus antepassados e ao sonho de seu pai, tornado realidade com esforço e também imenso prazer. 

Umas das tristezas de José é a falta de mão de obra. Curiosamente são jovens do Ribatejo que vêm ajudar às podas e à vindima porque em Cabeção poucos são os que mostram gosto por esta atividade. Se os jovens não se interessarem por esta atividade centenária, a tradição morrerá.

Pergunta quem não sabe: O vinho de talha é exactamente o quê? 

Tem a ver com  a fermentação que é feita na talha que, por ser porosa, permitir ao vinho respirar pelos poros do barro. Antigamente, selava-se a talha com pez, o que deixava o vinho muito aveludado.

Cabeção tem um micro clima e solos arenosos. Destes solos e deste clima conseguem tirar-se vinhos com um elevado grau de álcool.  A casta periquita, que em localidades vizinhas, como Coruche, não atinge mais de 13 graus, chega facilmente aos 16 graus em Cabeção. 

Pois é… Vinho de Cabeção que se preze, quer-se forte. Assim, beba-se com prudência este vinho senão, quando se quiser levantar, vai sentir as pernas a ceder e ficará colado à cadeira. 😄

Os estudos feitos mostram que o vinho da talha foi trazido pelos Romanos. Cabeção tem imensos vestígios de Romanos, sendo assim uma das povoações no Alentejo que preserva esta arte de fazer vinho há mais de 2000 anos. Já no século XVI Cabeção abastecia o Reino de Portugal. Aqui se estabeleceu São Salvador do Mundo, uma sub ordem da Ordem de Avis, que tinha por missão enviar o vinho para o Rei e cuidar da mata nacional, única no Alentejo. E já nessa altura o povo de Cabeção se insurgia contra o Reino quando aumentavam os impostos sobre o vinh

Algumas das talhas das duas Adegas de José Vieira, têm mais de 400 anos, sendo que as mais novas têm perto de 200 anos. A mesma uva, apanhada no mesmo dia e pisada da mesma maneira, dá vinhos completamente diferentes, dependendo da talha em que fermentam. Entre as mais velhas e as mais novas o sabor difere, cada uma produzindo sabores únicos. 

A vindima é tardia, dá-se pela altura da Feira de Cabeção, em Setembro, quando se começa a correr os vinhos que estarão a sair por volta de Dezembro. Pelo Natal já há vinho novo. 

A fermentação é processo longo. As peles da uva repousam nas talhas, chamam-lhes "a mãe" que, carinhosa e pacientemente, vai conferindo ao vinho características distintas daquelas que teria um vinho fermentado em duas a três semanas em cuba de inox. 

Antigamente usava-se azeite para fazer a selagem. Era assim que se conservava o vinho, que ficava à tona da talha e impedia o vinho de entrar em contacto com o oxigénio. Hoje trata-se com sulfitos.

 
Tão grandes são estas talhas que são precisas duas a quatro pessoas para as deborcar 
para que uma delas entre lá dentro para a limpeza 

Quando o vinho está a fermentar, abrir a porta da adega e entrar de imediato é correr risco de vida. Os ácidos que se liberta das talhas é brutal e pode ser letal. Histórias há de quem tenha morrido sob o efeito do dióxido de carbono. Areje-se a sala e entre-se depois. A Adega Cananó tem uma janela estrategicamente situada em frente às talhas.

Aqui se produzem cerca de 7 500 litros de vinho, o equivalente a 10 000 garrafas. 

(Entretanto chega  João, o homem que José Vieira espera venha a ser o continuador desta tradição)

Em tempos idos, em Adegas de Cabeção, donde se destacava a Adega do Zebro, produziam-se vinhos a partir de uvas com tanto açúcar que nem a fermentação conseguia transformar em álcool. Resultado? Ficava o vinho, tinto ou branco, doce, espesso, o branco ficava amarelo e o teor alcoólico chegava aos 18 graus.

Antigamente, coisas que os controles de qualidade actuais já não permitem, enriquecia-se o vinho com "condimentos" vários: um lacão de porco,uns marmelos ou maçãs para que o vinho ficasse mais doce e aromático. 

Foi aqui que José Vieira nos falou de uma história que o seu avô lhe contou, que em tempos aquele adegueiro de uma famosa adega de Cabeção, lhe desapareceu um gato, tendo o avô Cananó encontrado o esqueleto do gato dentro de uma talha, quando limpou a balsa da mesma. O certo é que naquele ano o néctar que saiu da talha foi eleito o melhor vinho daquela temporada. Será talvez um mito! Mas José Vieira ainda hoje acredita na história do seu avô.

Entretanto, chamamos João à colação. Diga-me lá, é sua intenção continuar esta história de família? Para alegria de todos os presentes a resposta é positiva. João é jovem, tem muitas actividades, mas não deixa de dedicar muitos fins de semana à adega Cananó. Tem nisto muito prazer, não só pelo seu pai mas também, e muito, pela memória do seu avô. Não quer João que se perca a tradição. 

Junto com a sua irmã espera poder ter mais talhas e produzir mais vinho de talha em Cabeção. Bem-haja!

Em terras alentejanas Vidigueira e Vila de Frades apostaram fortemente no vinho da talha, os produtores associaram-se, criaram cooperativas e conseguiram o reconhecimento da zona como DOC (Denominação de Origem Controlada). O associativismo trouxe muitos benefícios para os produtores e para a sobrevivência do vinho da talha. José Vieira pensa que em Cabeção ainda se vai a tempo de tomar iniciativas para salvar a tradição. 

O vinho resiste às crises e é uma actividade economicamente resiliente. Quanto ganharia Cabeção e todo o concelho de Mora com o incremento da actividade, dizemos nós. Com a certificação DOC o rótulo das garrafas poderá ostentar vaidosamente a denominação de vinho de talha. 

A venda das quotas da vinha têm vindo a matar a vinha em Cabeção. Muitos hectares são hoje apenas plantações de pinheiros, as quotas da vinha foram cedidas para o Norte, para os Açores e outras regiões. 

José Vieira, conjuntamente com outros Cabeçanenses, travaram orgulhosamente a última venda de quotas, que teria levado mais 6 hectares de vinha da freguesia de Cabeção. 

Recentemente, a resiliente família Cananó plantou uma pequena vinha em Cabeção, dando assim continuidade à tradição daquela Vila, esperando que daqui a 5 anos possamos provar o um novo néctar, reservando o mesmo uma surpresa. 

José Vieira diz que espera que “alguém” possa ajudar a manter esta arte única de fazer vinho, pois como ele diz,  "isto está a tornar-se um “Hobbie” muito caro de manter, os apoios são inexistentes ou nulos, com a agravante de muitas pessoas não compreenderem os valores para pagarem um litro de vinho, desde precioso néctar, produzido de forma tão singular, mas com enormes custos de produção.  Assim como é dispendioso manter e renovar as vinhas, deixando a maioria dos últimos produtores deste singular e precioso vinho sem capacidade de renovar as suas plantações. Desejam os Cananó que se encontre rápido uma solução a curto prazo antes que seja tarde demais.

Na sua Adega Museu, como lhe chama José, podemos admirar enormes e preservadas talhas de barro, bem como alguns belos azulejos alusivos ao vinho da talha elaborados por outro Cabeçanense, o “Badofo”, e alguns antigos acessórios, como grades, os cabaços ou os cochos. Mais coisas castiças estão a caminho para embelezar este pequeno mas muito bonito espaço.

Fica a promessa de que os CANANÓS vão fazer tudo que esteja ao seu alcance para que esta arte de fazer vinho não acabe em Cabeção.




Veja o vídeo com José Vieira na sua Adega do Cananó

Adega situada na Rua da Fonte Velha, na zona do castelo em Cabeção

Vinhos da Talha_Alentejo

Vinho de talha.vinhos do Alentejo

Vídeo e Fotos | Karla Moura (excepto a primeira que pertence a Cananó)

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